quarta-feira, 7 de maio de 2014

A miragem de Jabor e FHC

O texto do Jabor, “O Brasil está com ódio de si mesmo”, me incomodou, apesar de sua tese não ser novidade. Em certo sentido, a ideia de que tem algo de recente nos males da vida urbana brasileira e que esse algo novo se deve à recente coalizão entre o patrimonialismo de Estado petista e o patrimonialismo oligárquico tradicional, busca conferir uma dimensão psico-social à recente tese do FHC, publicada na Folha, de que o PT converteu o “presidencialismo de coalizão” em “presidencialismo de cooptação”. A diferenciação entre coalizão e cooptação parece ser aqui apenas figura retórica, de quem está em campanha, se nos perguntarmos o que bem pode significar um “presidencialismo de coalizão” num país cuja cultura tem o “favor como mediação quase universal”, como celebradamente formulou o vencedor das batatas, Roberto Schwarz. Seria o mesmo dizer que CPI é apenas um instrumento investigativo do poder legislativo e não um instrumento político, como sua prática legislativa a tornou.

A conexão que sugiro aqui entre coalizão e favor não é figura retórica: a ideia de um presidencialismo de coalizão, um sistema de governança mediado por alianças programáticas, combinada com um traço geral da cultura, o favor, tende a gerar uma conversão prática, a cooptação. Isso significa que não foi o PT que subverteu nossa “democracia de coalizão” (FHC), ela já veio mediada pelo favor. Nem os “bons costumes” de nossa cultura (Jabor), porque o favor é uma das mediações que reatualiza o Brasil  violentamente desigual, contra o qual pessoas com biografias muito diferentes sempre se mobilizaram e foram combatidas com violência física por patrimonialistas oligárquicos (DEM) e neo-oligárquicos (PSDB) à frente do Estado.


O problema em Jabor e FH, e é o que me incomoda, é aquilo que pressupõem em seus textos: Jabor pressupõe “defeitos e doçuras do povo” como marca gentil de um imaginário nacional que nunca existiu, ou talvez só tenha existido numa tarde qualquer com caffè macchiato no Leblon; e FH pressupõe um presidencialismo que também nunca existiu, que não combina com a ajuda seleta a banqueiros, com comprar votos para a reeleição, com pagar 35 reais por guardanapos, com anistia de 1,8 bi a empresários no caso Sudam e Sudene,  etc. O que parece é que esse Brasil não conhece o Brasil das mobilizações populares abafadas com o sangue, que são muitas, e tentam dar sentido a contradições históricas que vêm se acirrando. O Brasil de FH e Jabor tem como ponto de comparação uma idealização, o imaginário de um povo defeituoso, mas doce mesmo assim, ou de um presidencialismo de coalizão sem a mediação do favor e sua marca institucional, o patrimonialismo. Aliás, o que será que ele quis dizer com "defeitos e doçuras do povo"? Que povo é esse?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Partidos de todo o mundo, uni-vos!


As recentes manifestações parecem ter pegado os partidos brasileiros de saia justa. Ninguém esperava por algo tão rápido, tão grande e com reivindicações tão diversificadas. E isso talvez porque muitos dentre nós cresceram num mundo ainda em boa medida pregado no bairro, na cidade, no telefone. O turismo fácil e de longa distância era algo restrito a poucos afortunados, a informação era centralizada nos jornais impressos e televisivos e incluía em sua maioria temas e problemas nacionais. Poucos estrangeiros, produtos e pessoas, faziam parte do dia a dia. A isso correspondiam evidentemente mobilizações locais, que tratavam de problemas locais, que eventualmente e sob alguns aspectos alcançavam a agenda nacional. Tão evidente quanto isso é o fato de que, naquele tempo recente, havia aqueles que compunham as classes dominantes, que conseguiam com mais frequência que as mobilizações populares fazer dos seus interesses problemas da nação. Depois do último regime ditatorial, finalmente conseguimos estabilizar nas instituições políticas a correlação de forças presentes na sociedade e partidos dos mais variados matizes viram a luz.
Partidos da direita então representaram egressos do establishment da ditadura e alguns partidos de esquerda foram fundados e outros ainda puderam sair nas ruas sem ser ameaçados de morte, pretendendo dar voz, no sistema político, aos interesses da maioria: as classes populares. Mais claramente lá nos 80, essa pluralidade de interesses organizada politicamente fez com que os partidos políticos estivessem mais ou menos vinculados a interesses de classes sociais determinadas. Na medida em que os partidos se constituem enquanto meio para disputar a condução do Estado, para que, através dele, interesses determinados possam se realizar, eles são uma instituição e um símbolo da democracia. Por isso, as manifestações recentes incomodaram, e ao que tudo indica incomodaram mais ainda os partidos de esquerda, porque são eles que historicamente representam as massas contra o establishment, representado pelos partidos de direita.
Tenho visto alguns amigos e colegas militantes de partidos de esquerda indignados com o repúdio aos partidos nas manifestações. Para defender a presença dos partidos, alguns dentre eles têm associado ao fascismo o repúdio aos partidos. Historicamente faz sentido, afinal a primeira coisa que agrupamentos fascistas fizeram ao tomar o Estado foi perseguir os partidos. Isso aconteceu em todo lugar onde houve ditadura (Brasil, Chile, Argentina, Itália, Alemanha, França, etc.). Mas o que justificou o repúdio que vimos no começo das manifestações me pareceu ser completamente diferente do que finalmente vimos acontecer. Inicialmente, repudiou-se o partido político pelo fato de que, na disputa pelo poder estatal, ele tem concentrado o poder. Repudiou-se o partido em nome de mais democracia, por uma descentralização do poder, não em nome de uma idéia "unilateralizadora", como fizeram os fascistas ao longo da história e, nos últimos dias de manifestação, fizeram nas passeatas em São Paulo agrupamentos de direita e extrema-direita. Concordo com os meus colegas que uma manifestação pública deve se abrir para todos, irrestritamente. O problema é que, para muitos “a-partidários”, o partido se tornou a personificação da democracia restrita que temos hoje. Para outros poucos, o problema é a própria democracia, eles são “anti-partidários”.
Isso significa que boa parte do repúdio aos partidos não era anti-democracia; significa que, para a juventude que está aí, a política não está restrita ao sistema político, ela está no transporte urbano, na qualidade de ensino das escolas, no preço do tomate, do feijão, na divisão sexual dos papéis, na vida cotidiana. Como afirma o sociólogo Ulrich Beck, essa política que surge fora do sistema político, que não está dirigida para a conquista do poder estatal, é uma subpolítica e seus atores se organizam em rede e se mobilizam por afinidades plurais, por gostos e problemas específicos. Daí a diversidade de bandeiras e a ausência e até mesmo a recusa de lideranças. Nesse cenário, o sistema político e o partido perdem a primazia sobre o que é político: tudo tende a se tornar político, a educação dos filhos, o que e onde se come ou deixa de comer, a carreira, casar ou não casar, a divisão das tarefas domésticas, ir de carro, de ônibus ou de bicicleta, ter mais parques na cidade, homeopatia ou alopatia etc.; em suma, o estilo de vida se subpolitiza. Ou ainda: a política se generaliza, atravessa os portões do sistema político. Como formula o mesmo sociólogo, isso corresponde a uma democratização cultural da democracia.
A reação dos partidos de esquerda, ao que por enquanto parece, foi desajeitada, mostrou que eles não entenderam o que está acontecendo. Os de direita calaram-se. Ao invés de se preocupar em defender o sistema partidário, que enquanto modelo de representação política só me parece ter sido questionado por uma minoria de extrema direita, seria mais construtivo e necessário que os partidos se esforçassem em descobrir o que está errado no modo de funcionar do partido e do sistema de representação política e forçar a imaginação para construir novos mecanismos de participação nas decisões políticas, dentro do partido, na condução do governo e, sobretudo, no legislativo. E isso nas três esferas de governo.
Os problemas do partido são grandes: a morosidade e a territorialidade dos procedimentos para a tomada de decisão em sua burocracia interna e no sistema político contrastam com a agilidade e desterritorialidade da internet. O que significam protestos de brasileiros em mais de vinte e cinco cidades pelo mundo? Considerando que também há conexões com a primavera árabe, os occupy's, indignados, etc., me parece que a tendência tanto criticada por alguns colegas de profissão desde os anos 1990, que aponta para o surgimento de uma sociedade civil global, está pouco a pouco assumindo ares mais palpáveis, mais concretos: uma espécie de rede comunicativa global, que tende a não mais se restringir a organismos multilaterais nem ao mercado. Ao que tudo indica, pouco a pouco toma forma uma “globalização vinda de baixo”, que canaliza localmente movimentações globais e que, nesse sentido, vem contracenar com a “globalização vinda de cima”, do mercado e da diplomacia.
Os partidos, de esquerda e de direita, têm de se adaptar a essas novas condições de integração social. Agora é preciso mais reflexão. Como disse a presidente em seu pronunciamento, de meu lado também espero que as três esferas de governo consigam compreender e agir à altura do que está acontecendo: consolidar uma agenda emergencial e positiva, que desengavete, sobretudo no legislativo, projetos importantes para melhorar a saúde, a escola, o transporte e ampliar a participação civil nas decisões políticas. Somente assim, me parece, a distância que separa a agenda do sistema político da agenda subpolítica da sociedade civil poderá ser combatida. Caso contrário, tendemos a pagar, todos, um preço muito alto: a deslegitimação da democracia. Num sentido prático, o apelo “partidos de todo mundo, uni-vos!” se refere à necessidade de uma dupla abertura do partido: para dentro, deve ampliar os mecanismos de participação direta de seus militantes nas decisões e a participação civil na condução do governo e dos mandatos legislativos; e para fora, deve estabelecer uma frente de diálogo sistemático com partidos estrangeiros, de modo que de seus planos de governo locais e nacionais surja uma “cosmo-politização” capaz de fazer face a problemas globais que demandam articulações trans-locais, que vão da necessidade de regulação de um mercado global que incide localmente às mudanças ambientais globais. Em suma, há uma pergunta de fundo aqui: já que o impulso veio das ruas, não seria minimamente razoável o homem de partido pensar que a reforma política deveria ser acompanhada de uma reforma dos partidos?