As recentes
manifestações parecem ter pegado os partidos brasileiros de saia justa. Ninguém
esperava por algo tão rápido, tão grande e com reivindicações tão
diversificadas. E isso talvez porque muitos dentre nós cresceram num mundo
ainda em boa medida pregado no bairro, na cidade, no telefone. O turismo fácil
e de longa distância era algo restrito a poucos afortunados, a informação era
centralizada nos jornais impressos e televisivos e incluía em sua maioria temas
e problemas nacionais. Poucos estrangeiros, produtos e pessoas, faziam parte do
dia a dia. A isso correspondiam evidentemente mobilizações locais, que tratavam
de problemas locais, que eventualmente e sob alguns aspectos alcançavam a agenda
nacional. Tão evidente quanto isso é o fato de que, naquele tempo recente,
havia aqueles que compunham as classes dominantes, que conseguiam com mais
frequência que as mobilizações populares fazer dos seus interesses problemas da
nação. Depois do último regime ditatorial, finalmente conseguimos estabilizar
nas instituições políticas a correlação de forças presentes na sociedade e
partidos dos mais variados matizes viram a luz.
Partidos da
direita então representaram egressos do establishment
da ditadura e alguns partidos de esquerda foram fundados e outros ainda puderam
sair nas ruas sem ser ameaçados de morte, pretendendo dar voz, no sistema
político, aos interesses da maioria: as classes populares. Mais claramente lá
nos 80, essa pluralidade de interesses organizada politicamente fez com que os
partidos políticos estivessem mais ou menos vinculados a interesses de classes
sociais determinadas. Na medida em que os partidos se constituem enquanto meio
para disputar a condução do Estado, para que, através dele, interesses determinados
possam se realizar, eles são uma instituição e um símbolo da democracia. Por
isso, as manifestações recentes incomodaram, e ao que tudo indica incomodaram mais
ainda os partidos de esquerda, porque são eles que historicamente representam
as massas contra o establishment,
representado pelos partidos de direita.
Tenho visto alguns
amigos e colegas militantes de partidos de esquerda indignados com o repúdio
aos partidos nas manifestações. Para defender a presença dos partidos, alguns
dentre eles têm associado ao fascismo o repúdio aos partidos. Historicamente
faz sentido, afinal a primeira coisa que agrupamentos fascistas fizeram ao
tomar o Estado foi perseguir os partidos. Isso aconteceu em todo lugar onde
houve ditadura (Brasil, Chile, Argentina, Itália, Alemanha, França, etc.). Mas
o que justificou o repúdio que vimos no começo das manifestações me pareceu ser
completamente diferente do que finalmente vimos acontecer. Inicialmente,
repudiou-se o partido político pelo fato de que, na disputa pelo poder estatal,
ele tem concentrado o poder. Repudiou-se o partido em nome de mais democracia,
por uma descentralização do poder, não em nome de uma idéia
"unilateralizadora", como fizeram os fascistas ao longo da história
e, nos últimos dias de manifestação, fizeram nas passeatas em São Paulo
agrupamentos de direita e extrema-direita. Concordo com os meus colegas que uma
manifestação pública deve se abrir para todos, irrestritamente. O problema é
que, para muitos “a-partidários”, o
partido se tornou a personificação da democracia restrita que temos hoje. Para
outros poucos, o problema é a própria democracia, eles são “anti-partidários”.
Isso significa que
boa parte do repúdio aos partidos não era anti-democracia; significa que, para
a juventude que está aí, a política não está restrita ao sistema político, ela
está no transporte urbano, na qualidade de ensino das escolas, no preço do tomate, do feijão, na divisão sexual dos papéis, na vida cotidiana.
Como afirma o sociólogo Ulrich Beck, essa política que surge fora do sistema
político, que não está dirigida para a conquista do poder estatal, é uma subpolítica e seus atores se organizam
em rede e se mobilizam por afinidades plurais, por gostos e problemas específicos. Daí a diversidade de bandeiras e a ausência e até mesmo a recusa de
lideranças. Nesse cenário, o sistema político e o partido perdem a primazia sobre o
que é político: tudo tende a se tornar político, a educação dos filhos, o que e
onde se come ou deixa de comer, a carreira, casar ou não casar, a divisão das tarefas domésticas, ir de carro, de ônibus ou de bicicleta, ter mais parques na cidade, homeopatia ou alopatia etc.; em suma, o estilo de
vida se subpolitiza. Ou ainda: a política se generaliza, atravessa os portões do sistema político. Como formula o mesmo sociólogo, isso corresponde a uma democratização cultural da democracia.
A reação dos
partidos de esquerda, ao que por enquanto parece, foi desajeitada, mostrou que
eles não entenderam o que está acontecendo. Os de direita calaram-se. Ao invés
de se preocupar em defender o sistema partidário, que enquanto modelo de representação
política só me parece ter sido questionado por uma minoria de extrema direita,
seria mais construtivo e necessário que os partidos se esforçassem em descobrir
o que está errado no modo de funcionar do partido e do sistema de representação
política e forçar a imaginação para construir novos mecanismos de participação
nas decisões políticas, dentro do partido, na condução do governo e, sobretudo,
no legislativo. E isso nas três esferas de governo.
Os problemas do
partido são grandes: a morosidade e a territorialidade dos procedimentos para a
tomada de decisão em sua burocracia interna e no sistema político contrastam
com a agilidade e desterritorialidade da internet. O que significam protestos
de brasileiros em mais de vinte e cinco cidades pelo mundo? Considerando que também
há conexões com a primavera árabe, os occupy's, indignados, etc., me parece que
a tendência tanto criticada por alguns colegas de profissão desde os anos 1990,
que aponta para o surgimento de uma sociedade civil global, está pouco a pouco
assumindo ares mais palpáveis, mais concretos: uma espécie de rede comunicativa
global, que tende a não mais se restringir a organismos multilaterais nem ao
mercado. Ao que tudo indica, pouco a pouco toma forma uma “globalização vinda
de baixo”, que canaliza localmente movimentações globais e que, nesse sentido,
vem contracenar com a “globalização vinda de cima”, do mercado e da diplomacia.
Os partidos, de
esquerda e de direita, têm de se adaptar a essas novas condições de integração
social. Agora é preciso mais reflexão. Como disse a presidente em seu
pronunciamento, de meu lado também espero que as três esferas de governo
consigam compreender e agir à altura do que está acontecendo: consolidar uma
agenda emergencial e positiva, que desengavete, sobretudo no legislativo,
projetos importantes para melhorar a saúde, a escola, o transporte e ampliar a
participação civil nas decisões políticas. Somente assim, me parece, a
distância que separa a agenda do sistema político da agenda subpolítica da sociedade
civil poderá ser combatida. Caso contrário, tendemos a pagar, todos, um preço
muito alto: a deslegitimação da democracia. Num sentido prático, o apelo “partidos
de todo mundo, uni-vos!” se refere à necessidade de uma dupla abertura do
partido: para dentro, deve ampliar os mecanismos de participação direta de seus
militantes nas decisões e a participação civil na condução do governo e dos
mandatos legislativos; e para fora, deve estabelecer uma frente de diálogo
sistemático com partidos estrangeiros, de modo que de seus planos de governo
locais e nacionais surja uma “cosmo-politização” capaz de fazer face a
problemas globais que demandam articulações trans-locais,
que vão da necessidade de regulação de um mercado global que incide localmente
às mudanças ambientais globais. Em suma, há uma pergunta de fundo aqui: já que
o impulso veio das ruas, não seria minimamente razoável o homem de partido
pensar que a reforma política deveria ser acompanhada de uma reforma dos
partidos?